Por trás da mulher velha que está à minha frente, e não me reconhece mais, revejo a mulher de mãos grossas e gestos ansiosos que não sabia estar quieta. Está numa casa de saúde. Tem Alzeimer, uma doença que progressivamente apaga da memória todas as lembranças, até a da própria identidade. Uma doença que faz a pessoa regredir a um estado infantil, e a torna depende dos outros para as necessidades mais simples.
Revejo-a serena em sua ansiedade, sempre em movimento, a trabalhar para a família, para a paróquia, a ajudar os outros. Nas grandes casas que teve em Portugal, ou nos apartamentos em que viveu nos últimos anos da sua vida, a sua atitude foi a mesma: levantar e fazer o que tinha de ser feito. Este é o exemplo que quero guardar para mim: viver é fazer o que tem de ser feito.
Esta firmeza e determinação, juntamente à dificuldade de demonstrar o afecto, podiam fazê-la passar por uma pessoa dura. Sei que alguns de seus filhos sentiam às vezes falta de um gesto mais carinhoso, mas sei que eles sabem que ela tinha as suas razões para isso...
Por trás da mulher sentada à minha frente revejo a menina que cresceu num colégio interno. Vejo-a sozinha, imagino como se terá sentido quando os seus pais se separaram, um escândalo para a época! Penso na emoção que não terá tido de esconder para continuar o seu caminho e ter força para manter-se firme em seus propósitos.
Por trás da mulher sentada à minha frente revejo a avó compreensiva que acolheu a neta na fase rebelde em que a palavra de ordem era “não acho nada!” “17 filhos, que loucura!” Quantas vezes não disse então esta frase. Hoje em dia penso o mesmo, mas não o diria. Hoje em dia tenho um sentimento de reverência por esta mulher que deu à luz dezassete filhos sem nunca ter posto em causa essa escolha, sem nunca ter abandonado a tarefa. Hoje em dia sei que o importa não é perceber, é aceitar.
É então que sei da grande notícia. Uma de suas filhas, a sua filha especial, aquela para quem a diferença se instituiu desde que nasceu, decide levar a mãe para sua casa, dar-lhe um fim de vida mais acolhedor, mais doce. Passada a fase da surpresa geral, esta filha, na sua firmeza, mas também na sua delicadeza, foi abrindo espaço no coração dos irmãos, incluindo-os no projecto, tornando-os cúmplices da sua vontade.
O nosso encontro aconteceu na última fase do plano, quando já estava tudo pronto para a nova vida. As alterações casa, as enfermeiras contratadas, o filho preparado para a grande mudança. Antes da grande empreitada, resolve vir ao Brasil passar uns dias com o filho, estar com a sobrinha mais velha. E também saber como neste país, onde nunca se esquece o lado gostoso que tem a vida, tratava os doentes de Alzeimer. Entrou em contacto com associação dos parentes de Alzeimer, falou com musicoterapeutas, procurou bibliografia actualizada sobre o assunto. Vibramos juntas com cada novidade e com a expectativa do momento que se aproximava. Foi neste clima que nos despedimos.
Logo que chegou a Portugal, soube que o estado de saúde da sua mãe tinha piorado, esperava-se a sua morte a qualquer minuto. A vida tinha escolhido outro caminho.
Tudo perdido? Não acho nada! O mais importante aconteceu: ter a idéia, reunir os 16 irmãos, juntá-los num projecto em que a razão era dar uma vida melhor à mãe de todos. É preciso não deixar apagar a conquista deste movimento.
Conciliar afecto com diferença, sem dúvida uma das maiores dificuldades da vida. Nesta grande família que adora discutir, das mais pequenas às coisas mais importantes, percebo com alegria que o afecto está inteiro, o que tem a ver com o mãe e o pai que tiveram.
A mulher que morreu chamava-se Maria e era minha avó. Como sua neta mais velha tenho hoje comigo a pulseira “dos corações”, a pulseira que ela trazia sempre consigo e onde todos nós, os filhos, os filhos dos filhos, os filhos dos filhos dos filhos estávamos representados por um coração gravado com o nosso nome. Olho-a e vejo nela o símbolo do desejo maior que nos deixou: o que importa não é perceber, é aceitar.
Madalena Vaz Pinto